11/06/2013

Entrevista de Paul Singer, Secretário Nacional de Economia Solidária (SENAES) concedida a Ricardo Prado do Caderno de Sustentabilidade do Carta na Escola

O auto emprego coletivo
Por Ricardo Prado

Na 3ª edição do nosso Caderno de Sustentabilidade, Paul Singer defende que a economia solidária é uma forma criativa de gerar renda, valorizar e fortalecer o conhecimento das comunidades.
Confira Secretário Nacional de Economia Solidária, o economista Paul Singer está atento aos milhares de movimentos subterrâneos que vêm acontecendo debaixo de nosso nariz. São cooperativas formadas por ex-desempregados, por vizinhos e pequenas comunidades, ou, ainda, por artesãos ou pescadores que antes nadavam cada um por si - e todos contra a corrente econômica. Nesta entrevista concedida a Ricardo Prado, Singer conta como nasceu a ideia do cooperativismo e dimensiona o alcance dessa mudança de atitude de milhões de trabalhadores que abandonaram o sonho de ser funcionários com carteira assinada sem precisar, também, deixar de sonhar com uma vida melhor.

Carta na Escola: Há um boom atual do cooperativismo que nasceu com o movimento ambientalista e o comércio justo. Ele chega a ter algum impacto econômico?

Paul Singer: Digamos que já aparece, não é traço. O comércio justo, pelo que estou informado, está crescendo na Europa à base de uns 20% ao ano.
Isso é explosivo, quer dizer que, de três a quatro anos, isso dobra. Então, hoje já se conta em bilhões de dólares o movimento do comércio justo, mas, ainda assim, do comércio internacional é coisa de 2%.
 
CE: O comércio justo pretende eliminar o atravessador?
 
PS: Não, eles próprios são atravessadores. O comércio justo é comércio. Sem fins lucrativos, dentro do espírito da economia solidária, mas eles têm os custos normais do comércio, só que fazem questão de remunerar melhor os produtores. Por isso que é justo e solidário, pois dá aos agricultores e extrativistas uma remuneração bem melhor. O que significa que o produto do comércio justo pode ser 10% mais caro que o outro. E tem a parte ideológica, eu vi isso acontecer na Europa, eles têm feiras de comércio justo, muita gente está lá comprando e não está atrás de barganhas, tem outras razões. Uma das razões é saber que se está ajudando uma coisa que merece ser ajudada em termos ambientais e sociais. Eu estive lá, em uma feira na Alsácia, na França, para comprar umas coisas para trazer para o Brasil. O atendimento é totalmente oposto ao de um supermercado. Tem gente lá que está interessada em contar histórias.

CE: Era uma feira regular de comércio justo?

PS: Acho que sim. Fui convidado para fazer umas conferências, passei algumas horas lá e fiquei muito bem impressionado. Não só pela quantidade de pessoas que estava circulando ali, mas, sobretudo, pelo entusiasmo dos vendedores. Eles não viviam disso, eram militantes. Mostraram-me o sistema de aquecimento solar artesanal e barato. Mesmo áreas que não têm energia elétrica podem ter o uso de energia solar para aquecer água, cozinhar. É um aparelho que não custa muito caro porque é artesanal. Você vê várias coisas ali.

CE: Nessas feiras também se vende tecnologia, então?


PS: Vende-se tudo, tecnologias, ideias, afeto. Você entra num mercado capitalista, pelo menos eu, e a primeira coisa que tenho é a vontade de não ser enganado. Quando você entra num centro de economia solidária, o espírito é totalmente outro, inclusive ninguém está interessado em dizer: “Compre o meu produto".

CE: Como surgiu a Secretaria Nacional de Economia Solidária, uma experiência inédita no Brasil?

PS: A história da Secretaria de Economia Solidária nasce, inicialmente, na campanha de 1998. Lula estava muito preocupado com o desemprego. Ele organizou no Instituto da Cidadania um seminário sobre o desemprego. Eu tinha feito uma viagem de avião com ele e comecei a defender a ideia de que nós deveríamos organizar os desempregados. Ele me olhou com espanto: "Olha, o que o sindicalista menos quer ver na frente é desempregado, porque desempregado é competidor do trabalhador assalariado que ainda tem emprego e é sócio de sindicato; portanto, o sindicato organizando desempregados é um contra-senso, porque o interesse do desempregado é tomar o seu emprego". Eu disse para ele que nós tínhamos soluções para os desempregados. É para organizar, para eles terem emprego, mas não emprego capitalista, é auto emprego coletivo, isso é possível de fazer, organizando- os em cooperativas e produzindo uns para os outros. No final daquele seminário sobre desemprego, acho que a semente ficou. Quando Lula foi eleito, em 2002, me pediu e eu escrevi umas duas páginas sobre economia solidária para o programa dele. Hoje ele é um partidário convicto da economia solidária.

CE: Então Lula mudou de opinião?


PS: Ele mudou lá nos anos 90 e em 2002 estava comprometido com a economia solidária. Ele não falou com ninguém e decidiu que a economia solidária seria promovida pelo BNDES, porque na cabeça dele essa questão está muito ligada ao microcrédito, o que em parte tem razão, pois um dos problemas da economia solidária é ter acesso ao capital. Ele me convidou, na verdade, para ser diretor do BNDES e aceitei, tudo isso antes da posse.
O presidente do BNDES ia ser o Carlos Lessa. Ele foi chamado pelo presidente eleito, aceitou e deu uma entrevista dizendo que 'o Lula dera liberdade total de escolher os diretores menos um, que é o Paul Singer'.
Fiquei sabendo assim! Depois, a ideia evoluiu para a criação de uma Secretaria de Economia Solidária vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego.

CE: Está havendo um fortalecimento da economia solidária no Brasil?
 
PS: Sim. A Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) estima em 6 milhões de cooperados. A economia solidária vem sendo mapeada pela Secretaria em parceria com as universidades do Brasil. No fim do ano passado contávamos com 22 mil empreendimentos da economia solidária no Brasil e esses são economias solidárias mesmo, autogestionadas, às quais estavam associadas 1,75 milhão de pessoas. Já não é uma coisa insignificante, e nós nem conseguimos mapear a totalidade dos municípios brasileiros. Existe um comitê gestor em cada estado que organiza a ida aos municípios ainda não visitados e sempre se encontram empreendimentos de economia solidária sob forma de cooperativas e associações ou grupos inteiramente informais. Graças a essa atividade junto ao pessoal das DRTs, estão vindo agora para a economia solidária as comunidades tradicionais, especialmente indígenas e quilombolas. São 700 mil indígenas vivendo hoje no Brasil em comunidades e eles descobriram que os valores da economia solidária são exatamente os mesmos tradicionais deles. Há também quebradeiras de coco, seringueiros, pescadores, garimpeiros, todas comunidades tradicionais.

CE: É um retorno às origens, mas ao mesmo tempo com um olhar contemporâneo?

PS: Isso. E a economia solidária é um instrumento para isso.

CE: Falando em origens, quando surgiu o cooperativismo?


PS: A reação dos trabalhadores à Revolução Industrial foi extremamente negativa, porque a Revolução Industrial estava destruindo o seu modo de vida. Eles chegaram a matar inventores, queimavam fábricas, e era até compreensível que fosse assim. É com Robert Owen, na primeira década do século XIX, se dá uma mudança de atitude, pois ele, sendo um industrial, percebia a revolução como uma coisa positiva. O que ele propunha era aproveitar os ganhos da Revolução Industrial em favor dos trabalhadores.

CE: Owen era de família rica?

PS: Ele casou com a filha de um proprietário de fábrica e acabou sendo diretor de um grande complexo têxtil em New Lanark. Na fábrica ele proibiu o trabalho infantil, limitou a jornada de trabalho, criou escolas e cuidava para que os trabalhadores tivessem condições decentes de trabalho e vida. E a fábrica dava muito lucro. Com isso Owen deu para as cooperativas, que no início eram puramente defensivas, uma proposta de mudança social. A cooperativa como um sinal de uma possível sociedade diferente no futuro.

CE: Estamos falando de cooperativas de produção. Quando começam a surgir as primeiras cooperativas de consumo?


PS: Elas surgiram simultaneamente. As primeiras eram para garantir a subsistências dos trabalhadores. Eram cooperativas que vendiam alimentos para os trabalhadores, inclusive para os que estavam em greve, funcionava como um fundo de greve. Os associados eram todos trabalhadores. Esse movimento de cooperativismo de consumo ganhou um poder econômico imenso.
Na passagem para o século XX, o varejo era dominado por cooperativas, não só na Inglaterra, mas em todo o continente europeu. Houve um momento em que eles tinham superioridade financeira e competitiva em relação ao pequeno comércio. Só que esse desenvolvimento entrou em crise quando o capital norte-americano investido no comércio inventou o auto-serviço, ou seja, o supermercado, que não tem empregados e cria toda uma tecnologia de embalagens para o freguês se servir sozinho, coisa que não acontecia antes.

CE: Uma cooperativa no sistema tradicional não distribuía lucros?
 
PS: Algumas dessas grandes cooperativas que se transformaram, ao longo do século XX, em supermercados, competindo com os outros estabelecimentos capitalistas, viraram sociedades anônimas, são empresas capitalistas.
Agora, outra parte desse movimento cooperativista continuou de esquerda - e a ideologia é importante nesse caso - e entrou para o comércio justo, o consumo responsável, o movimento ambientalista, quer dizer, garante produtos puros... Na Suécia, por exemplo, as cooperativas de consumo hoje vivem um novo auge, porque elas se diferenciam dos seus concorrentes capitalistas pela qualidade do serviço que oferecem aos consumidores.

CE: As cooperativas sempre deram muita atenção à educação. Essa ligação forte com a educação permanece?

PS: A origem dessa ênfase na educação está no pensamento de Robert Owen de que o homem é fruto da educação. Ele tinha, no fundo, uma teoria materialista que Marx depois transformou em uma coisa bem mais sofisticada, combinando com a dialética de Hegel, mas a ideia básica de Owen era essa: se você quer gente boa, se quer bons cidadãos, gente pacífica, dê-lhes uma educação eficiente. Na sua fábrica, Owen introduziu a escolaridade obrigatória das crianças, tirou-as da fábrica e levou-as para a escola. Atualmente, o que nós temos no Brasil e em outros países são muitas cooperativas na área educacional. Há vários educadores que deram às suas escolas o caráter auto gestionário. O escritor russo Leon Tolstoi foi um deles. Ele criou uma escola em que não havia professores, as crianças praticamente aprendiam guiadas pela sua própria curiosidade.
Esse é um dos experimentos mais bonitos do século XIX em termos de educação. Depois foram repetidos na Polônia com Janusz Korczak, na Inglaterra com Alexander Neil e a escola de Summerhill, e hoje há centenas de escolas funcionando como cooperativas, inclusive no Brasil.

CE: O senhor tem algum bom exemplo de economia solidária envolvendo jovens estudantes no Brasil?

PS: Um ótimo exemplo são os alunos da chamada Casa Brasil. É um centro de inclusão digital criado pelo governo federal, hoje existem 3 mil casas pelo território sempre nas áreas mais pobres, nas favelas principalmente.
Eles frequentam essas casas e, depois, se profissionalizam, criam cooperativas para fazer softwares, para dar assessoria aos usuários de computador que muitas vezes precisam tanto para aprender como depois consertar, além de fazerem a reciclagem dos computadores. Porque computador uma vez superado do ponto de vista de seu usuário não tem mais o que fazer e ele acaba sendo poluidor. Há um caso que conheço de uma cooperativa de jovens em Fortaleza, no Ceará, em uma grande área pobre chamada Pirambu, eles têm uma cooperativa digital que atua em quatro atividades distintas da informática. Eles conseguem reciclar e vender computadores para a comunidade por 300 reais, a prazo, se não me engano pagando 30 reais por mês. Isso os pobres podem pagar.

CE: Gostaria que o senhor comentasse a experiência do Grameen Bank, criado pelo Prêmio Nobel de Economia, o economista Muhammad Yunus. Por que ela obteve tanta repercussão?


PS: Porque é o próprio espírito da economia solidária. O Grameen Bank é um banco que existe em 20 mil aldeias em Bangladesh e tem mais de 7 milhões de clientes, que são donos do banco. É a maior cooperativa do mundo. E é democrática. A política de Yunus é financiar mulheres. Ele quer resgatar os mais pobres e percebeu que as mulheres são muito mais pobres do que os homens. Ele, um muçulmano, atribui isso à religião muçulmana. Em Bangladesh, o Grameen Bank só financia homens quando eles são chefes de família e não têm mulher, o que equivale a cerca de 4% ou 5% dos clientes donos do banco. Mas havendo mulher é ela quem será financiada. O financiamento de construção de casas, por exemplo, só acontece se o terreno estiver no nome da mulher, que não costuma ter propriedade alguma em seu nome. O Grameen Bank é um banco revolucionário, feminista se você quiser. Eles agora estão lutando contra o dote, que arruína as famílias grandes e pobres. Segundo Yunus, dois terços dos sócios do Grameen Bank não são mais pobres. E nenhuma mulher recebe crédito sozinha. Ela tem de formar um grupo de cinco.

CE: Por que se formam esses grupos?


PS: Para unir as pessoas para que elas se ajudem mutuamente. Além de ajudar as pessoas com os empréstimos, o Yunus quer que as pessoas se ajudem. Trocando ideias sobre os seus negócios, fazendo algo juntas, se eventualmente quiserem. O interessante é que a cada oito grupos de cinco forma-se um grupo de 40 pessoas, assistido por um agente de créditos. Os agentes vão à casa das pessoas, em vez das pessoas irem às agências, que nem existem. É tudo ao contrário dos bancos capitalistas, para quem o devedor é um mal necessário que gera lucros, mas é visto com extrema desconfiança. Eles escolhem os que precisam menos, mas que seguramente vão devolver o empréstimo. O Grameen Bank é completamente diferente. Teve um seminário na Espanha em que uma mulher perguntou o que deveria fazer para ser aceita no banco. O Yunus respondeu: "Se você vivesse em Bangladesh, teria de se submeter a uma visita. Se tiver cama no seu quarto, está excluída do banco". Essa é uma diferença essencial. O que interessa é o princípio ético de atender aos mais pobres. Nunca tivemos no Brasil nenhum banco que seguisse essa filosofia. Mas a ideia está sendo difundida no mundo inteiro.

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